terça-feira, 30 de junho de 2015

Travessa

Travessa


Na travessa do mau tempo
Entre o meio e o inteiro
Desalmado, sopra o vento
Às soleiras, que é verdadeiro

Na travessa tão pequena
Bate a chuva de açucena
Molha o pingo na janela
E as pedras da ruela

Na travessa onde me sento
Levo às casas o meu tento
De um lado estão os pares
Do outro os ímpares

Na travessa sem princípio e nem fim
Dança o vento e a chuva sobre mim
Tão vocal é o delírio deste ver
E pergunto em que porta irei bater?


poema da obra: Ilhéu revolto





sábado, 27 de junho de 2015

Mar

     Mar


Oh mar! Tão intenso e imenso,
Deixa deitar-me no teu colo.
No teu azul a dor eu repenso,
E para ti dedico este canto a solo

No bater das ondas, ouço a tua voz,
Os segredos que me queres contar.
Vejo o fundo, e o céu de todos nós,
Que com o teu manto nos fazes sonhar.

Na rebentação emerge a tua raiva
E dos teus olhos submerge todo mal.
Sei que o teu toque tem o sabor do sal
E que o teu beijo é mais que carnal.

Foste o palco de dolorosas batalhas,
E muitos em ti invocaram o teu nome
Outros lançaram-te as suas malhas
Para poderem aclamar a sua fome.

Muitos por ti mataram, morreram
Desesperaram e por ti sofreram
Mas com a cabeça sobre o teu peito
Sei que onde repouso é o meu lar
E nos teus braços sei o que é a mar.
Obstinado, percebo o pequeno feito.



poema da obra: Ilhéu revolto

terça-feira, 23 de junho de 2015

A prosa do pedinte

     A prosa do pedinte


No entoar duma velha balada,
Ouvia os ecos na cabeça.
Com a cara encostada no vidro,
Ouvia-o percorrer pelo túnel:

- Um pedinte com a sua amada,
Num movimento que talvez mereça
O prazer do folhear de um livro
Entranhando o perfeito batel.

No abrir do gesto insignificante
Embarcava pela porta, a nuance
Da negada vaidade ao seu alcance.

Amordaçado ao trilho de ferro
Entoava no cálice de corpos
O olhar desviado do prazer

No opusculo, escondia o erro,
Acouçado dos meus olhos mortos:
- A lógica que ao pobre queria contradizer.


poema da obra: Ilhéu revolto

caminho da noite

     Caminho da noite


Condenso a sombra
Numa pequena agonia de luz.
Faço da noite,
O vício que me seduz.

Viajo num sentimento vago
Que arde com a dor que trago
Viajo com um corpo fraco
Num deserto magoado

Ando, de mão em mão,
Nos caminhos que não vejo
Mas é assim que desejo
A noite com a sua escuridão

Depressa, devagarinho,
Já o sol vem a caminho.
Vou vivendo o inverso
E desta forma acabo o verso

poema da obra: Ilhéu revolto

Sonha-me fora

     Sonha-me fora


Não eras mais que um pedaço de barro.
Rude, disforme, despido de sentimentos.
Trabalhei-te com a mais pura das ferramentas,
No escopo a vontade de criar algo raro.
Passava noites imaginando os monumentos:
- Serias o prazer para as velhas tormentas! 

No meu jardim ocupavas o lugar divinal, 
Por seres em tudo diferente das outras. 
Uma rosa de pétalas negras, 
Tingidas com o esforço do meu sangue.
Adornada com os mais perigosos espinhos,
Mas necessitando tanto dos meus carinhos,
Por seres tão frágil e especial.

Existia mais, queria ter-te perto de mim.
Retirei-te da terra que alimentava a glória.
O abismo redimia o teu papel, o fim. 
Mas numa estúpida manha fria,
Sem dizeres bem o que querias, 
Jamais tu não havias.

Agora nos braços, a tua liberdade, o espaço
Mas no barro nunca mais recordei o teu traço
Apenas nas ferramentas lia “Amor vincit omnia” 



poema da obra: Ilhéu revolto